29.1.10

O relógio e a moça banguela

E tinha aquela mulher magrela e sem dentes sentada logo a minha frente na cadeira vermelha de espera com braços pretos olhando com uma cara engraçada pros próprios pulsos, ou melhor para o antebraço que carregava um pequeno relógio dourado, já meio desbotado deixando mostrar acidentalmente aquelas falhas de bijuteria quando velha e mal cuidada.
Ela olhava com um enorme encanto para o tal relógio descascado e sorria com as gengivas para moça ao meu lado até que ela disse algo quase imcompreensível, que após um grande esforço pensando o que ela quis dizer resolvi concluir acreditando que ela havia dito.
- Meu relógio novo, comprei em Birigui.
E sorriu timidamente.
Mas bem no fundo eu não acreditei que ela conhecesse além das fronteiras rondonieses, quanto mais o estado de São Paulo que ficava a mais de três mil quilômetros de onde se encotrava agora. Uma pobre diaba. Tentou puxar assunto mais algumas vezes mas ninguém podia entender o que ela dizia, provavelmente sem os dentes na boca as palavras soam de uma maneira muito diferente, talvez o suficiente para parecer outra língua (além dela nunca conheci alguém que não tinha nenhum dente).
Até que finalmente a moça ao meu lado disse: - Muito bonito seu relógio.
E ela sorriu, e eu desejei ter uma máquina fotográfica pra gravar digitalmente o primeiro e mais bonito sorriso banguela que eu vi na vida. E eu me peguei pensando se todos os sorrisos baguelas eram espontâneos assim. Será que na verdade os dentes são tão exibidos que estragam o sorriso quando tentam amarelá-lo?

Deve ser ruim ser banguela.

E eu também percebi que, espontaneamente, estava pensando maldosamente em que homem iria querer uma mulher como aquela. Com aquele vestido branco de renda, onde as rendas se encontravam mais amareladas que o sorriso de um fumante, rasgada em alguns pontos e remendada em alguns outros. Com os pés sujos sob aqueles chinelos de borracha - também remendados - , e o cabelo tão duro e sujo quanto eu imagino que seja de uma moça do Haiti após um terremoto, e seu cheiro era tão forte que eu não pude distinguir se era compatível à falta de banho e o suor acumulado, ou à falta de escovar os dentes e lavar o cabelo, ou tudo junto - o que seria o mais provavel. Percebi logo em seguida que a pergunta fora respondida, mais maldosamente, quando lembrei-me da característica mais marcante da moça do relógio: Era banguela. Sem nenhum dente, ninguém na defesa... Para alguns homens isso podia ser muito, muito interessante.
Por fim ela pegou sua sacolinha com o celular nokia de lanterninha que uma senhora mais velha - porém mais lúcida e limpa - que a acompanhava comprou pra ela, e foi-se embora abrindo novamente aquele sorriso banguela que parecia realmente sincero.
Dei-me conta então de que talvez ela tivesse uma história incrível com vários namorados, talvez ela seja a rainha do sexo oral no seu bairro.
Ao vê-la caminhando de costas pude analisar como num filme sua vida, e a minha e a de várias pessoas que a gente nem se quer lembra que tem alma. Todos nós temos uma história incrível. E a dela era ser a moça banguela do relógio de Birigui, rainha do sexo oral no seu bairro. Mas eu não pude resumir a minha como a dela. A moça da claro que abandona amores para realizar mudança de ares.

Assim ficou bom!